Cultura do medo
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Voltando a noite com uma amiga em uma cidade pequena no sul da Alemanha, demonstrei medo e a cutuquei cautelosamente, cochichando.
“Vamos atravessar a rua.”
Ela, sem entender nada, olhou para mim e só me seguiu.
Depois de “despistar” um homem de aparentemente 50 e poucos anos que nos olhava fixamente do outro lado da rua, fiquei mais tranquila.
Semana passada, na mesma cidade, eu esperava o ônibus sozinha. Eram 21 da noite e, com meu fone de ouvido nada discreto, fui surpreendida por um homem na faixa de seus 30 anos. Distraída, cheguei a tirar o fone para ouvir o que ele falava. Ele perguntava minha nacionalidade e para onde eu ia.
Desespero. Vulnerabilidade.
Sozinha. À noite. Inverno. Medo. Ele insistia em saber. Saí correndo para o próximo ponto e o homem atrás de mim, até que percebeu que o próximo ponto era iluminado e cheio de gente.
No dia seguinte, contei para um grupo de amigas nascidas na Alemanha o ocorrido. Disse que estava com medo e que o homem começara a vir atrás de mim.
“Nossa. Ruim mesmo… mas o que você acha que ele faria com você? Vai ver ele só estava curioso mesmo. Podia só querer puxar papo.”
Comecei a responder, mas desisti. Elas não ficariam com medo? Como não pensaram em estupro? Pensei um pouco. E se ele só quisesse puxar papo mesmo? Será que me preveni à toa?
Não sei o que o homem queria naquela noite, e nem suas intenções. Pode ser que ele estivesse perdido, apesar da pergunta direta querendo saber meu rumo. Sinceramente, não tenho vontade de encontrá-lo novamente para perguntar, mas a dúvida ainda assim ecoa na minha cabeça.
Lembro das minhas experiências com esse tipo de ocorrido no Brasil, como as cantadas rotineiras do caminhão de supermercado que passam pela minha rua. Já fui pedida em casamento várias vezes e recebi convites para entrar no caminhão e ir para a casa daquele sujeito que nunca havia visto na vida. Continuo curiosa em saber de histórias de mulheres que reagiram com um: “ quer casar comigo? Então bora!”
Não vou dizer que duvido, mas acho difícil.
Falo por mim e pela maioria das mulheres com quem convivo: ninguém acha isso legal. Ser chamada de “delícia” e de “gostosinha” no meio da rua por alguém que nunca vi na vida não é elogio e nem eleva a auto estima. É assédio, e tem que ser combatido não só por mulheres e não só no Brasil. Quantas vezes não ouvimos sobre grupos como o Talibã, EI, Boko Haram, até mesmo alguns países e o jeito com que as mulheres são tratadas? Temos mesmo que aceitar isso mesmo após importantes conquistas e algumas Maries Wollstonecraft, Simones de Beauvoir e Malalas depois e em pleno século XXI?
No sábado, dia 21 de Janeiro, protestos tomaram conta das ruas de Washington DC, Los Angeles, Chicago e em outras cidades dos EUA. A Marcha das Mulheres não protestou só contra a posse do mais novo presidente dos EUA, e sim a favor das mulheres e da proteção de outros direitos humanos em seu governo, como saúde e imigração legal. Reunindo (só em Washington DC) aproximadamente 500 mil pessoas, entre homens e mulheres, o evento provou que a luta é diária e de todos, independente da religião, classe social ou etnia contra o presidente eleito, Donald Trump. O mesmo Trump que enfrenta processos contra assédio sexual; o mesmo que disse que amamentação é nojento em 2011;que ofendeu a candidata Carly Fiorina e disse que Hillary Clinton não satisfazia o marido, ex presidente Bill Clinton e que, por isso não satisfaria a America; o mesmo que disse em 2016 que mulheres que abortaram deveriam ser punidas e que Heidi Klum estava gorda.
Do outro lado do mundo, porém, nada é feito. Poucas mulheres se engajam na causa feminista e muitas preferem ignorar. Porém, a cultura do estupro continua firme e presente no Brasil, o país com o quinto maior índice da prática no mundo. Ainda, de acordo com o Ipea, 15 mulheres são assassinadas diariamente devido a violência por gênero. Apesar de alguns importantes passos já terem sido dados, como a Lei Maria da Penha no Brasil, ou o voto universal por exemplo, ainda temos um longo caminho a seguir.
Protestos como a Marcha das Mulheres seriam oportunos no Brasil e são importantes formas de conscientização sobre um problema pertinente e do interesse de todos, não só das mulheres. Infelizmente, a mobilização social ainda é relativamente pequena apesar de casos como os de estupro coletivo indignarem a sociedade e pequenos episódios machistas, como as cantadas estarem presentes no nosso cotidiano sem mesmo percebermos.
É então triste ter que explicar o porquê de atravessar a rua mesmo em uma cidade segura, de ficar com medo quando sou abordada por qualquer motivo que seja e de enxergar malícia em situações como essas. Ser mulher não é fácil no Brasil e nem em lugar nenhum no mundo. Enquanto não lutarmos contra esse problema localmente, teremos que contar com as passeatas mundo afora para lutarmos por todos nós.