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Acostumar para desacostumar

Me acostumei a acordar no frio e a deixar o café semi- preparado na noite anterior. Me acostumei a fazer compras nas segundas para não ter que gastar meu tempo de estudos no meio de uma semana conturbada. Me acostumei a acordar mais cedo e ver jornal ritualmente pelas manhãs. Hábitos.

Um dia minha Wi-fi caiu e não tinha mais internet. Não vi jornal.

Outro dia, o feriado caiu na segunda e o mercado estava fechado. Não fiz compras.

Semana passada perdi a hora por causa do frio junto ao cansaço e não acordei na hora desejada.

Imprevistos acontecem e nos obrigam a mudar nossa rotina e a nos desacostumar com as coisas que fazíamos diariamente.

Conversando com um casal de amigos recém terminados, João me contava que sentia falta da Maria pois com ela via Stranger Things na Netflix. “Parei no terceiro episódio e não consigo mais assistir. Ela que insistiu para assistirmos essa série.” Ele mandara mensagem com saudade e ela nem se dera o trabalho de abrir. Estava ocupada com Matheus.

Maria, por outro lado, acabara de conseguir uma vaga concorridíssima para um trabalho no mercado financeiro. Ela, que vivia desesperada atrás da vaga, finalmente vira seu sonho se tornar realidade após muitas rejeições. “ Vou mandar mensagem pro João! Ele vai ficar super feliz! Me apoiou pra caramba durante o processo todo!”

Mas ela não mandou.

Os dois episódios tiveram uma semana de intervalo. Ele não via mais Netflix, arrasado e ela estagiava escondida de João enquanto conhecia melhor os companheiros de trabalho. Os dois acostumados estavam no processo de desacostumar-se, ela mais avançada do que ele.

Nos acostumamos com tanta coisa que, mesmo quando queremos que o ciclo acabe, é difícil encerrar uma etapa da vida em um estalar de dedos. Mandar mensagem é a força do hábito. Em um dia Maria estava lá e no outro o bloqueara apesar de todos os esforços de João para fazê-la feliz. Ele não era o bastante. Maria era sabida, mais velha e, consequentemente, motivo de endeusamento por parte de João. Era corajosa, sabia de tudo e, ao mesmo tempo, não sabia de nada.

Era difícil para ele beber Serramalte e não lembrar da cara feia que Maria fez quando experimentou na Mureta da Urca ou comer pastel de queijo minas que ela o apresentara. Andar de Jeep também não era legal: o pai de Maria tinha um carro da marca. Também não ia mais ao cinema no Leblon e não lia mais Dan Brown. Costumes dela, vai que se esbarram e ela já está com outro? Ele, cheio de pretendentes no Tinder e likes no Instagram, fazia sucesso entre as meninas, mas parecia não ligar. Um pensamento em Maria e seu mundo virava de ponta a cabeça independente da hora, lugar ou companhia.

Vendo a situação de longe, seus amigos botavam força para João sair daquela “bad”: Maria era claramente maluca e não sabia o que queria da vida apesar de muito mais vivida que do ele, super protegido e cheio de aventuras e sonhos para viver. Meses depois, João então aprendeu que o sofrimento passa e, alguma hora, uma parte da sua rotina será substituída por outra coisa, ou até mesmo por outro alguém. Ele precisava apenas de tempo.

Um término ou uma separação não são nada menos do que desacostumar-se com o passado. É mais do que esquecer a existência da Maria ou do João. É ouvir uma música do Legião Urbana e ser capaz de ignorar a letra e aceitar que as lembranças são lembranças por um motivo simples: aquela porta se fechou.

E quanto ao João e a Maria? Ele correu atrás até não dar mais, pois fora bloqueado após algumas tentativas de reconciliação e muitas brigas sem sentido. Ela se arrepende até hoje do término, mas é meio maluca e não dá o braço a torcer de jeito nenhum. Daqui a pouco ela volta a se acostumar enquanto ele já desacostumou e se acostumou com outra pessoa.


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